
Baseado na obra homônima de Raduan Nassar, Lavoura Arcaica é uma consagração lírica da condição humana em forma de tragédia. O retorno do filho pródigo que, por ironia (ou desgraça), põe `as avessas a casa do pai. Em cena, temos André, o filho desgarrado, resgatado pelo irmão mais velho e reconduzido ao seio da família. É um retorno espiralado de fluxos e refluxos a esparramar em palavras a essência do proibido. É aqui que Pedro é atirado sem dó na factualidade do desejo, lançado na memória de um que foi tragado pela escolha de afeto da Mãe e acabou consumido no amor incestuoso pela Irmã.
Um filme que captura o espectador para uma avassaladora viagem poética, cuja passagem se compra logo na primeira cena - metáfora íngreme dessa história: a expressão dolorosa de André, numa busca desenfreada do si mesmo, desintegrando-se no ato da masturbação. Na penumbra do quarto de pensão, incidências de luz casam-se com sons de um trem trespassando a cena, foco e desfoco andando pelas partes fragmentadas do seu corpo. É luz e sombra, angústia e prazer, num passeio do olhar (o nosso) pela pele difusa de André.
É deste momento que eclode toda a memória do filme: entrave erótico, lírico, mítico e porque não um comentário sobre a função da palavra incindindo sobre um mundo ainda sem nome e por isso mesmo tão potente – porque irrestrito -.
Inscrições fundantes do mundo das imagens (mãe) e do mundo das palavras (pai), temos um fluxo da subjetividade em claro escuro numa fotografia que acompanha as expressões pulsionais do personagem, sendo ora essa claridade da infância ora a sombra obscura do seu adolescer, num jogral que entumece a vista do espectador não só em pura sensação estética, mas em identificações coladas nessas manchas animadas do desejo.
Assim, para além da origem árabe e mediterrânea desta família (que insere um sentido de cores terra cota, musicalidade hipnótica e um comentário sobre a linhagem religiosa do pai), esta lavoura é arcaica porque é um antes que trata do mito original de toda humanidade.
São essas supressões de limite - interdito do incesto -, numa cúmplice concessão aos desejos humanos, alargada em argumentos de liberdade, alegria e sensualidade que enlaçam o enredo do filme. É a brandura muda de Ana, sua trapaça. É a travessia da sua imagem mítica em toda sua potência dual que emerge da terra 'dominando a todos com seu violento ímpeto de vida' . Não importa muito sua morte pelas mãos do pai na cena final. Ela permanece.
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